Blog da Sietar Brasil
(INATIVO)
Por Cristiana Lobo A Conferência 2014 da SIETAR Brasil realizada no final de agosto, na FIA, foi um sucesso. O número de participantes dobrou em relação ao ano passado. Um dos destaques foi a participação do pesquisador americano Milton Bennett, referência internacional no estudo da interculturalidade. Milton é um dos diretores do IDRInstitute, com sedes na Itália e nos EUA, e tem Ph.D. pela University of Minnesota em Comunicação Intercultural e Sociologia. Por quinze anos, ele integrou o Departamento de Comunicação da Portland State University (EUA), onde lecionou cursos como Estudos da Comunicação e Consciência Intercultural, além de ter publicado diversos livros na área. Antes da conferência, foi realizado o workshop Fundamentos Construtivistas da Comunicação Intercultural, com duração de três dias. Milton ressaltou questões como a importância do auto-conhecimento, a empatia e a diferença entre os paradigmas construtivista, positivista e relativista. Nesta entrevista ele compartilha alguns dos aspectos abordados durante as aulas e a conferência. 1) Qual aspecto você considera mais inovador no seu trabalho de pesquisa sobre comunicação intercultural? Eu tento estimular o avanço da discussão para o próximo ponto. O que se entende por análise intercultural vem da idéia de Eduard Hall de construir categorias que nos permitem comparar culturas. Desde a sua origem, o trabalho intercultural é baseado no relativismo cultural. Existem muitos sistemas e instrumentos dedicados a caracterizar uma cultura A, uma B e o que acontece quando estas duas entram em contato. Desde meados dos anos 50, a análise da interação se tornou mais elaborada e mais sistemas foram criados. Mas, em muitos casos, os sistemas se tornaram descrições reificadas de culturas e, na minha opinião, esta não era a intenção original de Hall ou de outros antropólogos pós-relativistas. (Eles são “pós” porque ainda estão usando a relatividade cultural, mas não em sua forma pura. Estão mudando o conceito de relatividade para permitir esta interação.) Por causa dessa reificação, a análise cultural tornou-se um grande "money maker", o "core of the business." De acordo com o criticismo da comunicação intercultural, estes sistemas baseados na descrição e na comparação simplificam, "exotificam" ou romantizam outras culturas. Estes sistemas (em sua forma reificada) criam estereótipos. A questão não é que nós não devemos tentar entender outras culturas, mas temos que fazer isto de uma forma mais elaborada, em um contexto. Além de deixar claro que não estamos definindo uma cultura nos termos das nossas próprias categorias de observação. O risco é o de construir o nosso conceito sobre outras culturas orientados por sistemas que também foram construídos por nós. Ao reformularmos a principal atividade da interação intercultural em termos da construção da observação de outras culturas, evitamos a reificação e a projeção etnocêntrica. 2) Como você entende o conceito de "identidade cultural" a partir da sua posição construtivista? "Identidade cultural" é em si um ato dinâmico de observação. Estamos observando a nós mesmos em termos culturais, colocando-nos em categorias culturais (ou, em termos de percepção, estamos associando “self-boundaries” com certos “cultural boundaries”.) É uma questão de auto-observação, auto-conhecimento por meio da cultura. As pessoas podem realizar este processo de várias maneiras e em diferentes níveis e configurações, é possível que se tenha uma “multilayered identity”, por exemplo. Eu realmente acho que esta é uma forma interessante de pensar sobre a identidade em geral, não apenas a identidade cultural. De qualquer forma, não se trata de algo que nós temos, mas sim de algo que construímos. 3) Quais são as áreas de aplicação prática da comunicação intercultural? A comunicação intercultural já tem uma grande influência na educação: os professores sabem que não adianta apenas ensinar aos alunos sobre outras culturas ou simplesmente colocá-los em contato com estudantes de outros países. Eles precisam facilitar este processo, ensinar aos alunos como adaptar o comportamento, como ter uma experiência e não apenas absorver novas informações daquele contato com outra cultura. Esta mentalidade já influencia a educação internacional e está se tornando mais comum na educação. No ambiente global de negócios também é cada vez mais reconhecida a competência na área intercultural. A questão é o que se entende por competência. E existe um conflito entre a definição de competência da comunicação intercultural e da psicologia cross-cultural. A questão basicamente é como dirigir a investigação da comunicação intercultural dentro das organizações, se por meio de avaliação pessoal ou desenvolvimento intercultural. Se utilizarmos a avaliação pessoal, vamos essencialmente medir as características pessoais e fazer o treinamento de acordo com essas características. É uma visão ligada à psicologia e, geralmente, tem muita credibilidade nas organizações. No entanto, na minha opinião, o resultado desta abordagem não é tão bom quanto o desenvolvimento intercultural. Outra área de aplicação da comunicação intercultural são os serviços sociais, serviços de saúde, de imigração e todos os tipos de serviços sociais prestados por ONGs e pelo governo. A comunicação intercultural tem muito a oferecer nestas áreas, o que está sendo lentamente reconhecido. Os governos são os últimos a reconhecer abordagens interculturais, provavelmente porque eles são ocupados mais por pessoas com formações relacionadas a política e economia do que a comunicação ou outras teorias das ciências sociais. 4) Você criou uma ferramenta de avaliação. Como você vê o uso de ferramentas de avaliação em um treinamento? O IDI foi inicialmente criado para evitar o problema da definição de competência em termos de características pessoais. A competência não é algo que você tem ou não tem, mas algo que pode ser trabalhado. Não sou contra o uso de assessment, mas sou contra o assessment que depende do tipo errado de ferramenta. Se definirmos a competência intercultural em termos de características pessoais, em teoria, não seria possível o treinamento porque estaríamos lidando com algo que você tem ou não tem. Há muitos treinamentos baseados nestas ideias, o que cria muita inconsistência. Por exemplo, quando você mede uma mudança de uma característica pessoal, então você já não está tratando isto como uma característica pessoal permanente. Uma abordagem mais intercultural é um treinamento em que se pode construir alguma coisa. O lado positivo é que você pode fazer algo sobre isso, porque não se trata de uma característica que você tem. Por isso, não tentamos alterar as características das pessoas, e nós nem sequer tentamos ensinar as pessoas sobre outras culturas. Ambas as abordagens perdem o ponto principal, que é ensinar a agilidade da percepção. Devemos ensinar as pessoas a perceberem um novo contexto de forma mais complexa e a ter a capacidade de experimentá-lo com um comportamento alternativo. Precisamos avaliar esta capacidade e, na maioria dos casos, este tipo de avaliação só pode ser realizada por meio de entrevistas ou observação direta. 5) O que caracteriza um treinador intercultural bem sucedido? Vamos partir do princípio que coaches ou treinadores já tenham um conhecimento sofisticado das teorias da competência intercultural. Eles devem ser capazes de transmitir credibilidade para o público. O treinador deve ser alguém capaz de praticar o que ensina e o que ele ensina é a sensibilidade às diferenças, isto significa que temos que ser sensíveis às diferenças dos participantes. Nós mesmos precisamos nos adaptar ao contexto que estamos lidando durante um workshop. Um treinamento sem sucesso seria baseado apenas na teoria ou apenas na demonstração de exemplos. Também é importante ir além do "search for yourself" porque isso seria abrir mão do próprio papel de treinador, que é o de ensinar às pessoas a observar e interpretar as situações de uma forma que não haviam feito antes. 6) O que você observa quando chega em uma nova cidade/país ou um ambiente com uma nova cultura? Voltando a Edward T. Hall, ele tentou descobrir como usar a antropologia para ajudar as pessoas a se adaptarem melhor a uma outra cultura sem tentar "to make an anthropologist". A estratégia foi proporcionar às pessoas categorias de observação, tais como high/low context. Quando eu chego em um país com uma cultura nova para mim, como o Brasil, por exemplo, tento ter em mente as cinco categorias de observação. Lembre-se, o propósito da observação é “entrar” na experiência da outra cultura. Assim, por exemplo, eu posso observar imediatamente como as pessoas se cumprimentam, se as pessoas se beijam e como isso funciona. Mulheres beijam mulheres e homens também? Observo como isto funciona em termos de gênero, porque geralmente há variações sobre quem beija quem e quando. Observo se as pessoas se beijam após o primeiro encontro e se as mulheres o fazem mais do que os homens. Às vezes as pessoas dão apertos de mão, o que significa uma interação mais formal. Vejo se o aperto de mão ocorre no início, durante ou no final da interação e avalio o que acontece nesta interação. Se você fizer boas observações, é mais fácil entrar e sair das interações de modo confortável tanto para você quanto para seus anfitriões. O contato com os olhos também é muito importante, presto atenção à maneira como as pessoas usam seus olhos (ou não). O que eu percebi aqui no Brasil é que as pessoas falam de uma forma mais circular, o que me fez pensar "what’s the point?". Mas a chave, quando você tem um sentimento como este, é perceber que algo pouco familiar está acontecendo e que você deve adaptar sua percepção para entender o subtexto desta comunicação. Outra questão que eu notei é a da negociação espontânea que acontece em torno de decisões simples como a escolha de um restaurante ou a volta para casa. Isto se enquadra na categoria de estilos de comunicação, como as pessoas se organizam para trocar mensagens entre si. Percebendo este estilo, é mais fácil agir de acordo com o jeito brasileiro de planejamento. Também se pode observar o quanto se é direto ou indireto, o que tem a ver com o nível de expressão emocional que pode ser apropriado ou não de acordo com o contexto. No Japão, por exemplo, se você quer ser ouvido, você não deve ser muito intenso, porque uma alteração na voz é tão incomum que as pessoas se chocam. Estes são alguns aspectos que você deve prestar atenção se você quiser ter uma comunicação mais eficaz e uma experiência mais apropriada em outra cultura. Antes de vir para cá, eu li algumas coisas simples sobre o Brasil. Mas foram mais interessantes para observar em que as pessoas prestam atenção e não para seguir uma lista do que se deve ou não deve fazer. 7) Como você ajusta a sua comunicação para trabalhar com grupos mistos? Idealmente, devemos adaptar a nossa comunicação ao grupo que estamos lidando. Você precisa praticar o seu "code-shifting" o tempo todo. Você tem que agir dentro do próprio grupo como um mediador cultural, ajudando a compreensão entre os indivíduos e gerando uma integração. Se o grupo é mais concreto, como muitos grupos formados por americanos e asiáticos, você precisa dar mais exemplos, e se o grupo é mais abstrato, você pode usar os princípios mais abstratos. Quando eu estou lidando com os europeus do norte, por exemplo, tenho tendência a enfatizar mais os princípios abstratos do que exemplos. Se eu der muitos exemplos pode ser que eu escute, "obrigado, mas somos capazes de elaborar nossos próprios exemplos." Você não se torna uma pessoa diferente, mas você adapta seu estilo de acordo com o seu “expanded repertoire” para ser mais eficaz em uma situação particular. 8) Quais são as características de um líder com competência intercultural? Mais uma vez eu acho que há uma controvérsia entre o conceito de liderança em psicologia cross-cultural e a abordagem interculturalista. Muitas vezes a psicologia cross-cultural avalia as características de personalidade para identificar se um indivíduo “tem ou não tem” a competência intercultural. Já o interculturalismo considera a possibilidade de desenvolvimento da competência intercultural, em vez de apenas "ter ou não ter". Psicólogos cross-culturais enxergam a liderança em termos de características intrínsecas que podem ser medidas. O interculturalista aposta na capacidade da pessoa de modificar o seu comportamento em uma perspectiva alternativa. De acordo com esta visão, a competência intercultural não pode ser medida por testes de características pessoais. É difícil percebê-la, a menos que você esteja observando o indivíduo em uma situação em que ele mude o seu comportamento. Se você observa, por exemplo, um chinês em um grupo de chineses e não-chineses, você busca entre eles quem possui uma forma autêntica de mudança de comportamento do padrão chinês para outro padrão. Quando você sabe o que observar você percebe isto com muita facilidade. É o que eu chamo de agilidade de percepção, a capacidade de mudar de perspectiva, a capacidade de compreender o contexto de forma complexa. Assim, um bom líder em um contexto global precisa ter empatia com uma visão de mundo alternativa, além da capacidade de agir de forma complexa naquele contexto. Saber agir com complexidade é uma parte importante deste processo, mais do que aprender duas ou três dicas sobre como atuar em uma determinada cultura. Muitos bons líderes sabem reconhecer a complexidade de um contexto. A questão é se eles sabem reconhecer quando usar um outro “approach” em outro nível de complexidade. 9) Como você define empatia e qual é a melhor maneira de desenvolver esta habilidade? Uma das definições mais importantes é a distinção entre empatia e simpatia. A simpatia é a semelhança, uma vez que na empatia eu quero entender o seu ponto de vista, e para isto eu tenho que saber algo sobre você, sobre a sua cultura. É mais profundo, há a tentativa de experimentar a diferença mais do que simplesmente se basear na semelhança. Porque se eu simpatizo com você, eu provavelmente não vou tentar experimentar como este contato pode ser diferente, eu estou aceitando a semelhança. Se você me dissesse, por exemplo, que seu cachorro morreu e eu para mostrar solidariedade expressasse tristeza, você poderia me dizer "Não, na verdade ele estava velho e doente, nós lamentamos mas foi um alívio, porque ele estava sofrendo." Eu estava partindo do princípio de que a morte do cão tinha o mesmo significado para ambos, e nós fazemos isso o tempo todo, nós projetamos. Você deve perguntar, “Ah, o seu cão morreu? E como você responde a isso?” Como você se sente sobre isso?” Primeiro você vai da simpatia para a empatia, é quando você começa a lidar com as diferenças. Em seguida há o aspecto cognitivo, em que você tenta entender como determinada pessoa organiza a sua visão de mundo a partir de seu contexto e suas experiências. Então há o aspecto intuitivo, quando você tenta chegar o mais perto possível daquela visão de mundo e procura saber como a pessoa se sente sobre determinada situação. É como tentar expandir seus limites e tentar sentir o que a outra pessoa sente, mas a partir de ponto de vista dela e não do seu. É um pouco o que o terapeuta faz quando ele tenta entender o que o paciente sente sobre algo. Mas aqui o que fazemos é comunicação e não terapia. 10) Como desenvolver a empatia? Eu não acho que a empatia é uma característica pessoal, é uma habilidade que as pessoas podem aprender e usar com fins positivos ou negativos. Os sociopatas, por exemplo, podem ter esta habilidade mas usam com más intenções, são manipuladores. No entanto, quando usamos a empatia no caso da comunicação intercultural, o objetivo é melhorar a comunicação. E para isso você precisa ter auto-conhecimento. Você precisa saber o seu limite, a sua identidade. Se você não tem uma idéia clara do que é você e do que não é você, então você não pode fazer isto. Você precisa saber onde você acaba e o resto do mundo começa, porque o que eu vou fazer é mudar isso e eu não sei esses limites e eu não posso mudar. Você não pode conectar-se o tempo todo e pensar "oh, eu amo todo mundo", isto não é eficaz, não tem foco. Eu sou quem eu sou, porque eu mantenho certos limites que me conectam a outros aspectos sobre a cultura americana e outros da cultura italiana. Tenho qualidades pessoais que atribuo a mim mesmo, não necessariamente qualidades culturais. Eu tenho grupos de referência que me ajudam a determinar se eu sou parte deles ou não. As pessoas podem facilmente aprender a fazer esta "boundary shifting". Fazemos isso o tempo todo quando assistimos a filmes ou eventos esportivos. Além disso, é cada vez mais comum para as pessoas que fazem trabalhos com energia de cura, meditação, ou outros relativos a disciplinas “psycho/physical”. Estas práticas geralmente envolvem trabalhos com controle de “self-boundary”, que podem ser aplicados na prática da empatia intercultural.
1 Comment
Maria Conceição Nunes Dornelles
29/7/2019 21:29:12
Gostaria de mais infos sobre Self boundary e treinamento intercultural
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